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Calvino e o Governo Civil

Em época de politica, fala-se muito em votar consciente, votar em ficha limpa, ser um cidadão! Mas qual deve ser a relação correta dos crentes com o governo civil? Há algum tipo de teologia ética que baliza a vida do homem e da mulher na sua esfera pública social e, estritamente falando, em sua relação com o governo civil? 
Jesus declarou: “dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus”. No momento desta afirmação, ele estava legitimando o governo civil como autoridade estabelecida e dada por Deus – “Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada” (Jo. 19:11 ARA), e ao mesmo tempo, proclamando a separação entre as duas esferas de governo: o governo civil e  o governo espiritual.  Portanto, fica evidente que o Senhor Jesus entende claramente a natureza do governo civil e estabelece o fundamento para uma relação correta com esta esfera de governo. E foi baseado nisso que Calvino ensinou sobre o magistrado civil.
Calvino afirma que Deus estabeleceu um duplo governo no homem, a saber, o governo espiritual e o governo civil. O governo espiritual trata-se do reino espiritual de Cristo que tem como seu agente visível a Igreja, já o governo civil trata-se do Estado na sua administração política. Estes dois ofícios ordenados por Deus são de natureza e função distintas. A igreja tem a função de “conservar o culto divino externo, a doutrina e religião em sua pureza, o estado da Igreja em sua integridade e levar-nos a viver com toda justiça[1]”, já o governo civil, por sua vez, tem o poder de administrar a sociedade, mantendo a ordem cívica e promovendo a justiça social.
Calvino defendia uma total separação destas esferas de poder e chamou de “loucura judaica[2]” a tentativa de querer unificar estas dimensões de governo, formando um tipo de  “estado teocrático” como acontecia na Idade média com a igreja católica romana.  
No entanto, apesar de afirmar a distinção destes governos, Calvino entende que deve haver uma relação de compatibilidade entre si e que eles não devem ser contrários. O pressuposto básico defendido pelo reformador é que o Estado é um oficio ordenado e instituído por Deus: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas” (Rom 13:1 ARA). Entendendo que as autoridades “procedem de Deus” e são “por ele instituídas”, o pensamento de João Calvino segue a coerência de que o Estado e a Igreja, embora diferentes em natureza e função, ambos têm o mesmo objetivo: executar a vontade divina. A Igreja executa a vontade divina na sua esfera de poder, e o Estado executa a vontade divina na sua esfera de poder. E esta vontade de Deus, tanto para a Igreja, quanto para o Estado, não pode ser contraditória.
Este posicionamento de Calvino diferiu tanto da visão papista quanto da visão dos libertários anabatistas. Se por um lado, o papismo defendia a centralização dos poderes espiritual e civil sob a tutela da igreja romana, por outro, os anabatistas negavam categoricamente a submissão aos governos civis, sob a alegação de dever submissão somente a Cristo. No seu ensinamento, Calvino combateu os dois extremos, tanto do absolutismo e da tirania, quanto do antinomismo e do autonomismo, ensinando  o principio do governo civil como sendo um oficio, “com o direito de governar ordenado por Deus para o bem-estar da humanidade[3]”.  
Na visão de Calvino, há uma relação coesa, embora contrastante, entre o magistrado e a Igreja.  O magistrado, além de ser guardião das leis e da paz, mantenedor da ordem e promotor da justiça social, deve estabelecer leis que são coerentes com a moralidade divina, que garantam os direitos do povo e, que também protejam a verdadeira religião. Por outro lado, a Igreja, como que vivendo debaixo da temporalidade das leis civis, além de honrar e estimar o magistrado civil, sendo-lhe submissa, também funciona, para o Estado, como um agente de aconselhamento – dando noticia ao magistrado acerca daquilo que precisa ser corrigido[4] - e reprovação.
Esta atitude de reprovação por parte da Igreja é a única exceção admitida por Calvino, quando o magistrado civil toma uma posição contra sua própria natureza e função instituídas por Deus e exige do povo algo que é contrário a vontade Deus. Para ele, o magistrado perde sua validade e utilidade quando perde sua identidade. Assim, o reformador ensinou o principio que a Igreja deve obediência ao magistrado e todos os governantes, mesmo àqueles que são maus e exercem o poder de forma coercitiva, no entanto, com esta exceção: enquanto estes permanecerem fieis às leis de Deus. Do contrário, se eles ordenam algo contra Deus, que “não seja de nenhuma relevância e valia[5]”.



[1] Institutas, 4.20.2
[2] Institutas, 4.20.1
[3]Commentary on the Epistle to the Romans, Chapter 13.1 – tradução minha.
[4] Institutas 4.20.23
[5] Institutas 4.20.32

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